O cemitério velho, abandonado, ficava em cima
de um penhasco, de onde dava pra ver o mar. A visão era um esplendor. Qualquer
um, desejaria ser sepultado ali. Pros lados, um mar de coqueiral, a se perder
de vista. As palmas a acenarem, ora pro céu, ora a abraçar a brisa de sabor
marino. A visão deslumbrante que se descortinava a frente, raptava aos olhos, levando-os
longe, tão longe. Até onde pudesse cegá-los de sal e solidão. Senhor Djalma
ponderou que talvez seu corpo, estivesse sepultado ali. Procurou, a esmo, a
própria sepultura. Tentou se reconhecer, entre os muitos rostos nas louças, das
lápides. Encontrou pessoas, que assim
como ele, vagavam. Se eram viventes ou espíritos, era complicado saber. Tentar
tocar não adiantava, o espírito não encontrava resistência e transpassava os
corpos. A única saída era cumprimentar, puxar conversa. Se fosse correspondido,
teria encontrado outro nas mesmas condições.
Algo o fez lembrar de Joelma. O canteiro com
um buquê de flores amarelas. Joelma, uma mulata com quem tivera um namoro.
Joelma negra, esguia, carnuda da cintura para as pernas. Joelma, uma mulher que
sorria. Lembraria dela sempre, como uma pessoa que sorria. Sorria com os olhos,
mesmo quando falava algo sério, ou corriqueiro. Sorria, com seus dentes alvos.
Sorria, as vezes, espalhafatosa, como se anjos fizessem cócegas a sua alma. Sorria
ainda mais, se o interlocutor a julgasse, inconsequente, sarcástica. Sorria com
seus lábios sensuais. Sorria meiga, a provocar fantasias nos desejos sexuais de
certos homens. E gargalhava, espetaculosamente! E como Joelma gargalhava! Sua
gargalhada, se morta estivesse, deveria virar patrimônio cultural da
humanidade. E ria de qualquer coisa. Mesmo que, o motivo da risada, nem fosse
algo assim tão engraçado. Ria, se seu riso viesse a causar estranheza, a quem
via, ou a ouvia rindo. Ria, a causar irritação num rabugento de plantão, de
levar aos resmungos e impropérios. Ria a causar inveja a Irene de Caetano. Joelma ria porque ria. Joelma, era mulher
feliz.
“Eu quero ir minha gente eu não sou daqui/ Eu
não tenho nada, nada/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene
dar sua risada. Caetano Veloso”
Joelma domara o mundo. E avaliava os homens,
pelo formato das sobrancelhas. Dizia: As sobrancelhas exageradamente cheias, definiam homens rudes, brutos no trato com as mulheres. As sinuosas, de homens
delicados demasiadamente. Sobrancelhas falhadas, de homens indecisos. As que se
uniam no cenho, pelo contrário, eram homens decididos, determinados na hora de
agir. Bem como eram do tipo, pavio curto. Sobrancelhas finas, pertenciam a
homens ciumentos, inseguros, as vezes violentos. Homens quase sem sobrancelhas,
ou arqueadas demais, pertenciam a homens loucos, psicopatas. Pra ela, senhor
Djalma era desses.
O mar se estava. Em toda sua exuberância, se
exibia. Mar feito calda de pavão. Ao modo de dizer do matuto: se amostrava. Os
que vinham da roça, pela estrada vermelha, e passava no portão do cemitério,
ao chegarem naquele ponto, paravam pra admirar o mar. Sentavam numa pedra,
acendiam um cigarro, feito de fumo de corda e seda. E o cheiro ia bater nas
ventas dos fiéis defuntos, dos que dormiam, também dos que estavam acordados,
sentados nas catacumbas apreciando a paisagem. Deu pra ouvir as gargalhadas de
Joelma, lá para além do muro do cemitério. Talvez fosse ela mesma, voltando de
uma festa no sítio. Estaria por trás do muro, flertando com um matuto. Mulata
faceira. Mulher da vida. Das que ficam com um homem só por prazer.
“Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que
só dizem sim/ Por uma coisa a toa, uma noitada boa, um cinema um botequim...
Chico Buarque”
Senhor Djalma lembrou de uma vez, que foi pro
sítio mais uma turma de amigos. Impelido pela euforia do álcool, se inventou de
roubar uns cocos. Escolheu um coqueiro que julgou baixo. Se enganou. Não era
tão baixo, só percebeu isso no meio da subida. Mesmo assim subiu, e subiu. A
despeito das picadas de mutucas, conseguiu derrubar os cocos. O problema ficou
por conta da descida. Afrouxou um pouco os pés, e pronto, rapidamente chegou ao
chão. Só que metade do couro da barriga, ficou no tronco malvado. Lavou com
cachaça o ferimento, e estaria tudo resolvido. Se os amigos, pelo resto do dia,
não se divertissem às custas dele.
A desavença de Silvio, com o homem que o
atacou no bar, tinha a ver com traição. O homem chamava-se Amilton, ficara
sabendo que Silvio, que um dia fora amigo, andara baixando as asas pro lado de
sua quenga. Também o atacou por causa de política. No passado senhor Amilton
fora vereador de mandato, e perdeu a última eleição porque, segundo ele, pessoas como Silvio
andara falando besteira a seu respeito. Teriam dito aos eleitores que não votassem mais nele. E o chamaRA de irresponsável. Foi o suficiente pra atacá-lo com
intensão de tirar-lhe a vida.
Um jovem, estava, sentado sobre uma grande
catacumba, de tijolos antigos. Encostado a uma imensa cruz negra. Tinha os
olhos no horizonte marinho. Uma placa desgastada, dizia o nome dos que ali
jaziam, com data de nascimento e morredoiro. Aproximou-se. Caramba!
Reconheceu-o, era o belo mancebo que noutro dia o viu lanchando num bar. Seria
ele, o pequeno Absalon? Senhor Djalma tivera com Nara, uma filha, uma menina
chamada Rana. E com Joelma tivera Absalon que morrera, com apenas dois anos de
idade. E sequer foi batizado, não vingou. Absalon estava enterrado ali. O filho
que ele mesmo sepultara. Se vivo estivesse, estaria exatamente com vinte e
cinco anos. Idade que o belo rapaz aparentava. Aproximando-se cumprimentou-o.
Ao jovem parecia que já o conhecia a muito.
O rapaz como se lesse seus pensamentos, disse-lhe que não era seu filho.
Seu filho Absalon estaria num outro nível, mais elevado que aquele. E que não
crescera em estatura, permanecera, em tamanho, como saíra deste mundo. Se
quisesse poderia levá-lo até onde ele estava. E foram. Caminharam por uma
vereda além do muro do cemitério, que levava a um jardim. Envolvidos estavam
numa neblina densa. O local remetia-os a um estado de muita graça, de muita
paz. Senhor Djalma não pode aproximar-se muito, mas deu pra ver seu filho que
dormia, embalado ao colo de uma mulher negra de rosto rechonchudo. Estava
rodeada de várias de criança, de idade infantil, e brincavam em uma algazarra
deliciosa. O vento que vinha do mar, tornava a tarde magnífica.
A bodega do senhor Belo, ficava na esquina da
ladeira do chafariz. Era uma construção velha. Datada de 1686. Lá no
alto do frontispício, assim informava. Construção tão rude, tão feia,
datava-se porque era moda. Casas tinham eira, beira e brasões. Isso era sinônimo de
prosperidade do dono, na época. Agora, porém nem a sombra do que um dia fora.
Afinal, mais de trezentos anos se passaram. Tantas demãos de cal tinham as
paredes a dar a impressão de gordas, de flácidas. Dois degraus mais elevado, separava o
pavimento interno da casa comercial com relação ao terreno da rua. Entrava-se
por uma das duas portas, e ia se encontrar num único vão de alguns poucos
metros, seis por quatro metros, talvez. O piso era coberto de tijolos achatados, quadrados. Não havia sortimento, nem variedade de mercadoria. Quase nada nas prateleiras. Os caibros do telhado retorcidos, enegrecidos, resignados na
sua tristeza de velhos. O cheiro, uma briga entre o charque e o querosene. Nada
havia lá que não estivesse desbotado. Como se as cores das coisas tivessem fugido. Foram todas pra lá fora. A bodega do senhor Belo. Os séculos não passaram
para aquele ambiente. O relógio com algarismos romano, parado, às seis e dez horas. As baratas, os únicos insetos que sobreviveram, trezentos anos de
história. No alto, pelo lado de fora, no canto direito, uma placa azul com letras
brancas, indicava o nome da rua que começava naquela esquina: Rua Vigario Bello.
E que nada tinha a ver com o dono da taverna.
Senhor
Belo continuava sentado na sua velha cadeira de balanço, na calçada. Ao ver
senhor Djalma sorriu. Sorriu com seu sorriso peculiar. Os olhos quase serrados,
as sobrancelhas brancas arqueadas, a barba cerrada. E os lábios. Ali, era onde
retinha o segredo do seu sorriso. A boca um pouco trêmula. Deixava ver parte dos
incisivos amarelados, num rosto quase nipônico. Senhor Djalma, sabia por conta dele era que sorria, aproximou-se. Senhor Belo, continuava
olhando-o, e disse: Você lembra? Um dia, bem aqui, sentado nesta cadeira como
estou agora, eu disse, que tudo isso ia lhe acontecer. Lembra?
28 de setembro de 2020.