Outra vez, o barulho da máquina
retroescavadeira o acordou. Potência de motor, sinal de alerta na marcha ré. Trovão
das pedras caindo da pá enchedeira. De fato, o céu acusava que a noite passada
fora de tempestade. Os muros amanheceram molhados. A goiabeira, a mangueira, o
pé de crote, todos sorriam, eram todos sorriso de orvalho. As pedras feitos mulheres
nuas, com seus sexos expostos, a apreciação pública. Pudor, de mãos que não
tinham, para cobrir suas vergonhas. Fissura no granito, imensa genitália,
molhada. Imensos glúteos. Talvez, o desejo sexual, reprimido pela doença,
fizesse ver coisas onde não existiam. As casas entumecidas, em rosáceos de flores
desabrochantes. Se doando, em lânguidos beijos.
Aproveitou a noite fria, pra ir
até a casa do amigo, o mesmo que reencontrara na rua. E que a tanto tempo não
via. Cumpria a promessa. Viera se abrigar justo na rua, que tem umas casas
altas, do lado que o sol bate nas fachadas, quando está perto de se por. Aquela
escadaria, tão familiar, lembrava de um tempo morara naquela mesma rua. Também
ocupara uma daquelas casas alta. A luz tênue. Um velho sofá, de braços flácidos
e gordos, de morno e terno abraço. O telhado de pé direito alto, de duas águas.
E lá estavam, um de frente para o outro. Por instantes apenas se olharam. O
anfitrião quebrou o silêncio. Disse que, se o amigo não o tivesse reconhecido,
jamais ele o reconheceria.
Lembranças, que sequer
compartilhara com o amigo, vieram na volta pra casa. De um tempo, na juventude,
que namorou uma menina que morava naquela vizinhança. De como ficavam os dois numa
sala de varanda, conversavam até de madrugada. O pai da garota, um beberrão,
enchia o saco dos dois, com suas conversas, nada a ver. Sobre futebol, de como
fora seu dia, nada interessante, de motorista no departamento de obras. Mas, não
demorava, e o bêbado, se recolhia. Então dava pra admirar o céu negro, ou a
noite de estrelas, conversar conversa boba, de dois namorados, de flertes cheios
de malícias. Nada que desse pra se preocupar, o futuro, pouco interessava. Não
passavam de dois jovens, que só pensavam em curtir, um ao outro. Ela, até que
era bonita, porém ordinária. Só pensavam, um ao outro, em satisfação pessoal.
Não saberia dizer para onde
estava indo. Precisava despistar o homem que achava estar seguindo-o. Andaria,
pelas ruas a esmo. Até que desistisse, até que se cansasse. Entrou no mercado
de cereais. Saiu por uma porta lateral, furtivamente, pensando o tempo todo em
despistar um suposto perseguidor. Alguém que talvez só ele via, só ele
pressentia. Alguém que talvez só existisse em sua mente, esquizofrênica, e a
mania de perseguição. Entrou numa igreja, que ficava no final da rua. Era uma
capela feia, pintura gasta, desbotada, de reboco estragado, de portas velhas, tijolo
simples, de algumas poucas bancadas. No altar um santo magro, com cara de
cansado, cara de sofredor, cara de choro, de angustiado. Como se nada tivesse a
oferecer, a alguém que precisasse dele. Numa sala contígua ex-votos.
A pele alva, o cabelo preto, o
corpo magro, o moço a admirava. Desejava-a. Embora tivesse vontade de tocá-la
não podia, não devia. Nutria um ódio, um ciúme, uma raiva pelo pouco caso que
fazia dele. Infundados sentimentos, mas senti-os com toda força. Entendia que
era descartado, desprezado. Não fazia questão de sua presença. O pior sentimento,
aquele que fere a alma, o desprezo. Prometeu vingar-se. Meteu a mão no bolso,
sacou um maço de cédulas, tantas que quase deixou cair. Abaixou-se, pôs-se a
contar de cócoras, sem tanto interesse pelo quantia que tinha ali. Apenas
desejo de posse, e de poder, prevalecia. Trocou de bolso, o dinheiro. Isso
talvez desse-lhe um pouco mais de segurança. Temia ser observado, tinha a
impressão de estar sendo observado. Talvez fosse só impressão, talvez fosse a mania
de perseguição que tinha. Toda vez que estava com dinheiro ficava assim,
obsessivo. Todos pareciam conspirar, todos queriam o que ele tinha. Uma mania
de perseguição. Resquício da esquizofrenia.
Àquele homem da esquina, vestido
no sobretudo negro, de chapéu, olhava-o com desconfiança, podia ser um inimigo
disfarçado. A qualquer momento poderia atacá-lo. Melhor sair dali, o mais
rápido possível. A cabeça doía. Os olhos doíam, o abdômen doía. Mandaria o
fazedor de ex-votos fazer um par de olhos de madeira, já que padecia de doença
nos olhos. Mandaria fazer um coração de pau, pois padecia de um mal naquele
órgão também. Sorriu por dentro, ao pensar num ex-votos do próprio pênis. Precisava
pra ficar bom, de infecção crônica no canal uretral. Quem sabe um boneco de
madeira de corpo inteiro, e a promessa faria curar todas as mazelas.
Era um rapaz, de família. Era do
bem, acabou virando um ladrão. Começou praticando pequenos furtos pela
vizinhança. A mãe, ficou sabendo, dava conselhos, não adiantava. De repente, não
queria mais estudar, só jogar bola no campinho. Dormir até tarde. Acordava e ia
pro aparelho de telefonia móvel. As amizades, eram de dar arrepios. Os moleques
que sacavam de drogas. Ilusão de pedra, e pó branco, um pouco de fumo, ilícito. Repassavam,
curtiam, revendiam. Os dias, passavam no bar da sinuca, nos quintais de rinha
de galo, cuidavam de cavalos de amigos, em troca de um passeio, só pra se mostrar pras
meninas, na porta da barbearia, nos vídeos games, lan houses.
Até que teve aquele dia. Ele
pulou o muro da vizinha, encontrou-a lavando roupas no tanque, apontou-lhe
um revólver. Obrigou-a a tirar a roupa, fez sexo com ela, ali mesmo em cima da lavanderia, a calça abaixada, o revólver encostado no pescoço. A mulher, uma
senhora, mãe de família, que humilhação. Jamais contaria aquilo pro marido,
morreria com tal segredo. Ninguém podia saber. O rapaz pulou outro muro, outro,
e mais outro. A polícia, acionada foi em seu encalço. Conseguiu alcançá-lo. Em
plena rua. Deu-lhe voz de prisão. Reagiu, atirando. A polícia revidou. O rapaz
caiu, no meio da rua. O policial apontava-lhe a arma ainda. Curiosos, em frente a porta
de casa. O policial aproximou-se, o rapaz caído, uma criança a porta de
casa, imensos olhos, olhando. O policial de pé, os óculos rayban refletiram o corpo
caído, guardou sua arma, girou nos calcanhares, se foi. O sangue vermelho, o
granito da rua.
Fabio Campos, 17 de Abril de
2021.