O porco, lentamente voando, passando entre nuvens, escuras, ameaçadoras de chuvas. A pele rosácea, viscosa, brilhando um
brilho mórbido, diáfano. Feito enorme dirigível. Os olhos fechados, como em
transe, em profunda hipnose. Nuvens tenebrosas, como num sonho, um pesadelo que
para a maioria, não significava coisíssima nenhuma. Não, não podia abrir os
olhos. Tinha medo que a visão do suíno voador pudesse realmente estar lá, no
alto. Sobrevoando as cabeças. Pior, era que ele conseguia ver sua consciência.
Facilmente entrava dentro dela. Conhecia todas as suas manhas, seus segredos,
suas vontades mais secretas, suas malditas memórias, os pensamentos de morte.
Podia ver, bastaria que lembrasse. E era o que mais acontecia. Rememorava, na pandemia
tinha tempo pra isso. Revia todos os seus pecados. A pandemia e suas malditas
finalidades. “Mente vazia, oficina de Leviatã.” Significaria o ponto de partida,
para alguns. O ponto final para outros. Tivesse ou não preparado. Achasse ou
não que não merecia partir, ou que devia ficar. A maldita lepra, e sua estúpida segregação.
Não apenas dava, mas também solapava, solavancava, apossava-se dos nervos. A capacidade de sonhar, era uma delas. A
última coisa que já mais imaginou que um dia pudesse acontecer-lhe. Confessar-se
com, e a um porco. O abafado do dia, fazia-o suar às bicas. Empapava a
camisa, colada a sua adiposidade cutânea, peluda. Contaria tudo, tim-tim por
tim-tim. E a ninguém mais além dele próprio, ia doer.
Filho, você roubou? Sim havia
roubado. Vilipendiou? Havia vilipendiado. Luxuriou? Havia luxuriado. Fora
omisso, preguiçoso, orgulhoso, mentira algumas vezes [pediria pra trocar a palavra mentira por:
faltou com a verdade]. Fora soberbo, vaidoso, seboso, orgulhoso. Pior, tudo fizera
na frente de outros humanos. Nada disso era imperdoável. Precisaria recompensar
pessoas com dez, cem, mil vezes o que havia subtraído deles. O tempo era propício, porém não ajudava. Mostrou-lhe lá no livro de sua consciência que levantara falso
testemunho. Não lembrava em que ocasião teria isso ocorrido. Bem, o que fizera estava feito. O cachorro que se
coçava das pulgas na sarjeta, sorriu-lhe, enquanto mordia-se. Ruborizou-se de
vergonha, não ousou encarar o pobre diabo.
O palhaço assassino, a menina
diabólica, a boneca psicótica. Àquela demoníaca tríade, seria o corpo de jurados? Não
lembrava nunca de ter convidado àqueles personagens macabros, para a festinha
de final de semana em sua casa. No entanto estavam lá. O inferninho começava no
sábado à tarde. Regado a uísque, cerveja, cigarro do capeta, pó de mico. Rock de estourar os tímpanos, curtido até alta madrugada, do domingo. O sol das manhãs de domingo. O mais
vagabundo de todos dentre os sóis do mundo. Convidava a todos a ficarem nus, a
despirem-se das roupas, dos pudores, das vergonhas, dos preconceitos, dos
dramas, que os arrastavam por suas vermiculares e fugidias vidas. Por semanas, meses,
anos, décadas, furtivamente, a se esconderem no ventre das segundas-feiras,
junto as pernas encolhidas. Tão encolhidas que os joelhos quase tocavam a
testa. Precisaria de muitas doses de vodka pura. Até que sentisse a língua
dormente, as narinas dilatadas, os olhos expulsando lágrimas, nunca desejadas.
Engasgo com gosto de pó, e som. Apagava.
No país dos pirulitos a vida, era
bem diferente. No país do algodão doce a vida era outra. O fim do mundo, ali,
jamais significou o fim de tudo. Pelo contrário, já tudo encenado, preparado
cada profissional no seu canto posicionado, pronto para agir: fotógrafos,
cinegrafistas, iluministas, iluminadores, cantores, tenores, sopranos,
bailarinos. Todos esperando o momento exato de atuarem. Pode ter certeza eles agiriam. Ninguém contava com o “Grand Finale” nunca, jamais aguardado. Embora,
no subconsciente todos sabiam: um dia ele viria. Era um mistério pandemicamente,
fantástico.
O mistério começava com a falta
de cor. O coquetel, a taça de cristal, sobre a mesa de vidro preparado para
matar, pacientemente esperavam sua vítima. O cálice transbordante de amor, de
ódio, esperando para ser tragado. Uma imensa cobra, aparentemente inofensiva
descendo sobre o braço da moça, de pele alva, passando sobre seus seios. Lânguida aceitando o carinho, do roliço ser, deslizando, em direção ao seu sexo,
volúpia, frenesi. A piscina, a água fluída, lâmina cortante, cor de sangue
framboesa, tingindo de vermelho o blue do azulejo balançante. Feito gelatina. Nunca abusavam disso.
A praça, o mago, o mágico, o
farsante, o encantador de serpente, o menino triste, o espaço que dava medo, a
estrada que nunca acabava, a palavra que sangrava, o perdão, o sim e o não, a
poesia com resquício de verdades, cegas. Um imenso saco de plástico, inflado,
preso ao lustre de cristal, pendia do teto branco. Era parte de uma brincadeira
estúpida: lá deviam colocar todas as preocupações: dívidas, dúvidas,
incertezas. A cada festa, para ser estourado no final. Tatuado de adesivos de diversas cores e ideologias. De um buraco branco emanava
pensamentos desocupados de preocupações. Explodiam xingamentos de um buraco no
balão. Ouvia-se gritos horripilantes, de criaturas horríveis em aparência e em
espírito, ameaçavam destruir um terço do povo do mundo, ódio ao que fosse certinho demais, adorar um ente chamado Divoc. E riam dele.
As aflições, os gritos
endoidecidos partiam de todos os lados. As luzes faiscantes e silenciosas das
ambulâncias se indo, levando mais um que talvez não voltasse. Teve saudade de um
tempo que era inocente. Ainda criança, escondido de todos, provou um pouco de cerveja, numa festas de
aniversário. Correu ao vaso sanitário pra cuspir fora. Foi ficando jovem, se
acostumando, acostumando. E tudo virou uma salada de frutas, que nunca teve
frutas. Secas de vida, de gosto duvidoso. Era tudo um cilada,
enganação.Tudo uma grande mentira, insípida, e, deliciosa mentira. Não existia
salvação onde prevalecesse a mentira, quase que sabia disso. Só que não teve ninguém que ensinasse como sair dela.
O corpo da terra, lentamente sendo cultivado. A chuva favorecia. Os corpos sem alma, um a um, desciam para
o abismo. As nuvens, as flamulas, as bandeirolas, balões infláveis, as festas, nunca mais seriam
a mesma, jamais, do mesmo jeito. Os sorrisos que partiram, deixaram saudade.
Viraram números. Não tinha como evitar, irremediavelmente esquecidos. Para onde
iam, ninguém sabia.
Fabio Campos, 22 de Maio de 2021.