O Gato [Alucinação - 1976] Cap. 15






A mulher não estava morta, dormia apenas. Era a mãe do Senhor Djalma. A reconheceu pelo cabelo. Como teria ido parar naquela casa estranha? Cheia de corredores escuros?  Por que estaria ali, àquela hora da noite? Achou que já era noite. E se haviam quartos, por que estava deitada naquele sofá? Poderia ter ido pra cama. Eram muitas perguntas sem respostas. Esperaria que o tempo lhe respondesse, um dia. As evidências iam surgindo por si só. Havia um porco morto, pelado, desviscerado. Pendurado pela cabeça, por um gancho de ferro preso a queixada. Enquanto o sangue pingava no cimentado. A luz que havia era alaranjada, e vinha duma lâmpada de bulbo leitoso, pendido dos caibros por um fio branco, preto de sujo.

O gato era da raça angorá. Todo desconfiado a um canto, apreciava a cena. Tinha as patas dianteiras unidas, próximas ao peito, numa posição incômoda. O dorso rente ao piso. As orelhas apontavam pra cima, feito a máscara do Batman. Longo rabo fofo. Os olhos abruptos, a cara fechada. A íris tentando se adaptar a pouca luz. Como um embriagado de mau humor. De ressaca, nada é interessante. O que um gato, numa ocasião com aquela, estaria pensando? Claro, tinha certeza que eles pensavam. Se assim não fosse, não teria como explicar as caras e bocas que faziam quando estavam atentos, observando. Um adágio dizia que gatos tinham o poder de ver os espíritos desencarnados. Tanto era verdade que estávamos vendo, um ao outro. Parecia que ninguém ali, pertencia mais ao mundo dos vivos.

Aquele gato o perseguia, desde a infância. Odiava-o. Desde o dia que urinou em sua cama. Não era como seu pai, que gostava de bichanos. Ao contrário, detestava-os. Os gatos urinavam para marcar território, disseram-lhe um dia. Jamais esquecera disso. O cheiro de urina de gato ficaria no colchão pela vida toda que viveu na casa dos pais. Passou a odiar todos os gatos do mundo. Poria na cabeça a ideia de vingar-se. Nítidas lembranças vieram, de vezes em que tentara livrar-se dele. Numa ocasião, à custa de muitos arranhões e mordidas conseguiu colocá-lo num saco de estopa. E levou-o por léguas adiante, no caminho da montanha. Qual não foi sua surpresa ao vê-lo de volta, são e salvo, uma semana depois. Passaram a odiar-se mutuamente. A ideia de dar fim ao gato, viraria obsessão. Um dia o menino Djalma viu o bichano dormindo sobre a tampa do tonel de água da chuva, na quina do oitão de casa. Com cautela aproximou-se, e com um golpe rápido derrubou-o dentro d’água. O felino foi parar no fundo. Todo molhado emergiu, cheio de pavor nadou como pode até as bordas, o seu pelo molhado puxava-o pra morte, a muito custo conseguiu sair.

Poucos dias depois que o pai partira desta vida, abalado pela perda do amigo, o gato também velho e doente, morreu. Coubera ao menino Djalma, a obrigação de se livrar do cadáver do gato. Acometido por um misto de raiva e repulsa, colocou o pobre animal dentro de uma mala velha. E saiu pela rua, se sentindo como um criminoso que acabara de cometer um crime, de matar alguém, e agora ter que dar fim ao corpo. Lá ia o menino, carregando o sinistro numa mala preta, que pesava quase um terço do seu próprio peso. Mal conseguia disfarçar o medo de ser pego pelo guarda municipal, e ser acusado de um crime que não cometera. Como um fugitivo apressou o passo, ao alcançar o caminho que dava pro rio. Apesar de inimigo deu-lhe sepultamento digno. Colocou-o num lugar bonito, próximo a ribanceira do rio. Cobriu a mala com um pouco de terra e pedras.  Muitos anos depois passara naquele local, mas nem vestígio havia da sepultura. Sabia exatamente o local. Nunca saberia se as aves de rapina, ou algum bicho do mato teria aproveitado os restos mortais daquele gato. E lá estava ele, o dito cujo, bem à sua frente.

Seria mesmo aquele gato? Que parecia com ele, parecia! Claro, que era! Reconheceria aonde o visse. E foi o que aconteceu assim que o viu. Tinha certeza, ali estava ele. Evidências começaram a cristalizar em sua mente. Lembrava-se de quando morou na vila da praia, toda vez que ia banhar o rosto no sol matinal. Lá estava ele, o gato que um dia fora do seu pai. E que ele próprio enterrara na ribanceira do rio. Dormia o sono dos justos, bem acomodado entre a calha e as telhas da eira, da casa da senhora Maria Augusta. Ao lado de um vistoso pé de carambola, o ano inteiro carregado de frutos. A lembrança que mais o assustou foi o da vingança do gato. Claro, o gato um dia vingar-se-ia, do ódio que o senhor Djalma denotava a ele.  

Dentro de casa era noite. Lá fora o dia vertia raios de sangue nas nuvens do céu, como se o sol sangrasse de morte. Enquanto urubus fatigados do dia, se arrumavam como podiam pra passar a noite nas palhas de uns coqueiros. Brigavam entre si por um melhor lugar. Estavam sempre por perto, prontos para disputarem os restos dos porcos abatidos, atirados no fundo do quintal. O homem ficou um tempão contemplando aquele findar de dia. Pensativo, atirava algumas pedras para enxotar alguns urubus mais afoitos.

Senhor Djalma, depois de casado, foi morar num chalé perto da ilha das Croas. Quase no encontro do mar e o rio. Era um casebre de taipa, coberto de palha, o piso rústico de barro batido. Fogão à lenha. Senhor Djalma nesta época criava passarinhos. O alpendre era cheio de gaiolas, com papa-capins, sanhaçus, pintassilgos, calopsistas, ararinhas e canários do reino e belgas. Num dia, com cheiro de trágico no ar, o gato, ninja, deslizou pelas frestas do telhado. Aproveitando a madorna da tarde preguiçosa, covardemente atacou, várias gaiolas. Ao ver a macabra cena da carnificina, Senhor Djalma chorou. O inimigo, dali por diante tornar-se-ia, o imortal, arqui-inimigo. E foi pro mar, pensando num velho adágio que dizia: “A vingança é um prato que se deve comer frio.”

Fabio Campos, 29 de Agosto de 2020. 

A ilustração deste capítulo é foto da contra-capa do Long Play de Belchior "Alucinação" de 1976. O cantor era também artista plástico, e produziu a capa deste disco usando pastel e hidrocor sobre papel.                            .  



 

Jogo, Vida.... Cap. 14



Era uma avenida espaçosa, completa de casas noturnas. Os luminosos convidativos anunciavam prazer, à venda. A sensação proporcionada pelo álcool, era de leveza. O dia todo caminhara pelas ruas. Pelas ruas enevoada de luz frugal, vagara. Percebeu que ali próximo morava um amigo. Resolveu ir até lá. Ele o recebeu efusivamente. Comentou sobre seu aspecto, oposto de jovial. Ficou sem jeito. Resignado, aceitou a brincadeira. Concluiu que um amigo era pra isso, pra dizer a verdade, ainda que doesse. Teve oferecida uma dose de um uísque. Aceitou. A bebida tinha gosto de uma fruta exótica. Jamais esqueceria o gosto daquele uísque. Porém se alguém perguntassem não lembrava a destilaria que engarrafara. Excepcionalmente guardara o degustar da primeira dose. De modo especial a tomara. Continuaram bebendo.

Vivia momento ímpar, o que a música na vitrola beneficiara. Tinha luz alaranjada, em todo o ambiente. Uma luz terna, envolvente. Melodia familiar, que remetia a outros tempos. Da época que viveram aventuras juntos, viajaram juntos, com outros amigos. Algo o incomodava, não lembrava daquele amigo na viagem que ele fazia questão de lembrar, porém outros rostos ficaram. Outros sorrisos. Outras palavras, e brincadeiras. O amigo, no entanto, via-o com muita nitidez. Lembrava em especial dele, e vivia cada momento como se estivesse vivendo naquele instante. E dizia, que aquele reencontro fora providencial, daria para brindar, encontros de tempos idos. No íntimo senhor Djalma quedava-se constrangido, surpreso, por não ter guardado com tanta ênfase, as lembranças, ao qual o amigo guardara, e dava tão grande importância. Intimamente lamentava, não ter guardado com o mesmo sentimento que o amigo guardara.

Lembranças outras foram chegando. Não eram lembranças de quando estava com ele. Mas naquele instante lembrou de momentos graves em que se meteram em confusão. Facilmente metiam-se em ciladas, e de como sairiam ilesos delas. Parecera simples aventuras. Porém, olhando de volta pro passado, dava pra ver que alguns envolvimentos foram muito sério. Depois de tanto tempo, certas ocasiões, reviver que com aquele amigo escapara da morte até. De se envolverem sério, com gente barra pesada.

De ameaças com canivetes e corridas nos becos escuros. E de não ter tempo de indagar o que estaria acontecendo. Só ter que correr, e correr, salvar a pele. Viver vida perigosamente. Sem se preocupar com isso. E se valia a pena? Isso não estava nos planos se perguntar. Na ocasião, enquanto ocorriam os fatos, não vinha ao caso questionar, apenas vivê-los. Anos depois, talvez valesse a pena. Rindo ele lembrou de um dos episódios, em que o amigo se envolvera com um gigolô que queria matá-lo, por ciúme de uma prostituta. Desdenhava, dizendo que não tinha medo de morrer. Não à época. Continuou se encontrando com a mulher alheia. E que acabaria dando no que dera. Brigas, socos, pontapés, e fuga.

Olhar a mar a noite causava arrepio. O mar, a noite virava um monstro, debatendo-se entre a vida e a morte. Imenso monstro marinho, agonizando na praia. Ver o mar de noite causava calafrios. Mexia bem lá dentro da alma. De dentro do mar, vinham as almas de quem já morrera. Vinham vindo, descansar na praia. E procuravam se achegar perto dos vivos, tentando angariar um pouco de calor humano. Infelizmente não tinha o calor de que necessitavam. Eram igual. As poucas luzes dispersas na ilha da croa. Palitos de fósforo acesos, que debatiam contra a neblina, contra o negrume da noite luta insana contra a maresia. Os coqueiros dormiam, as casas rudes cansadas, sonolentas, conversavam coisas do dia. E de muito longe, muito longe. Como se fosse sonho, vinha o som de tambores, como se a noite tivesse o poder de ressuscitar as senzalas, as rezas, os cânticos das negras e dos pretos velhos, em torno de uma fogueira.

Sob a luz vermelha do cabaré, todo mundo tornava-se bonito, ou aparentemente bonito. Debaixo da penumbra tudo era sedutor, tudo era sensual. Tudo tinha um preço, tudo tinha um valor. A carteira de cigarro, propositalmente ostentada no bolso da camisa. Estratégia para uma aproximação. Nem toda as raparigas eram fumantes, mas no processo de sedução, para se envolver com um homem, elas se aproximavam e pediam um cigarro. Se o cara estivesse a fim daquela mulher, o cigarro seria dado, junto com o isqueiro prontamente aceso, um flerte. Aproveitava fazia um elogio. Perguntas envolventes. Se não estivesse a fim que se virasse pra acender. E uma pergunta inevitável, os custos: Quanto custaria ficar com ela? Todo homem, toda mulher tinha um preço.  Quem já amanheceu num cabaré sabe, no dia seguinte o ambiente já não tinha o glamour da noite anterior. 

Passou por um corredor escuro que ia dar numa sala de paredes sujas. Cheiro forte de carne crua, havia sangue no chão. Uma mulher estava deitada num sofá. O rosto estava virado para o lado da parede. Não tinha como ver seu rosto. Alguém comentou: Parece quer essa mulher está é morta!

24 de Agosto de 2020. A foto que ilustra este capítulo é a capa do long play "Frank Zappa and The Mothers" by 1974.






 

A Praça Cap. 13

 




Senhor Djalma avistou a praça, pareceu-lhe tão abandonada. As árvores, soltavam folhas secas que se acumulavam nos canteiros, ou iam levadas pelo vento. Folhas tristes, desprezadas, esquecidas. O vento que soprava, era um vento seco, vento de veraneio. E vinha trazendo uma areia fina pra cima das eiras e beiras das casas, pra cima dos batentes da igreja. Acinzentava as curvas do sino. Amarelava as folhas. E vinham pra cima da roupa. Trazia silêncio, serenidade, sabedoria. Ensinava, e lembrava que somos pó, e que  ao pó um dia retornaríamos. Dava pra ouvir o cansado som do chocalho de uma vaca. Era a vaca vermelhinha, que vinha tangida por Pedro, o menino azul. Mas o que Pedro estaria fazendo ali na praça, àquela hora? Esquecera que os mortos podiam ir pra onde quisessem, sem se preocupar com hora de voltar. Aliás, nem tinham pra onde voltar. Essa era a vantagem de quem morria, de ficar vagando. De não ter pra onde voltar.

A menina amarela, Cecília, também estava lá. As duas crianças brincavam na praça, enquanto a vaca vermelha, pastava o capim do canteiro. Senhor Djalma se aproximou. Cecília tinha o olhar fixo em Pedro. Ela sentara-se na borda do canteiro. Senhor Djalma sentou-se no banco mais próximo que havia. Tentou puxar conversa. Sem tirar os olhos de Pedro, a menina disse:  Ele na verdade chama-se Cássia. Senhor Djalma, quedou surpreso! E perguntou, o que a menina realmente havia dito? Ela repetiu, Pedro, na verdade, era uma menina e chamava-se Cássia. O velho Jeremias nunca aceitou que naquela casa só tivesse mulheres, ele queria um menino para ajudá-lo na lida do campo. E desde os quatro anos de idade, Cássia teve que vestir roupas de menino, cortar o cabelo como menino, e dali por diante se chamaria Pedro, mesmo sendo uma menina.

A vida tornou-se ainda mais dura para a pobre Cássia, tinha que acordar cedo pra cuidar de gado, ir pra roça junto com o velho Jeremias. Tinha as mãos calejadas, adquirira musculatura rija, braços de varão. Perdera a delicadeza, a feminilidade de menina, dando lugar a bruteza da masculinidade, aflorada por conta do trabalho pesado. A cada inverno tinha que enfrentar o frio da madrugada. No verão o calor sufocante dos campos. No tempo de colheita trabalho duro. Até que aconteceu aquele dia. Fui ver a vaca “Vermelhinha”, que é como nós a chamávamos. “Vermelhinha” estava prenhe, já em dias de parição. Ao chegar no curral percebi que a vaquinha querida do velho Jeremias, tinha se iniciado no trabalho de parição. Pedro correu a avisar ao velho, que ficou muito animado, e decidiu que aquilo merecia uma comemoração!

E se pôs a beber. Ouvimos tiros para o lado do curral, e fomos ver o que era. O velho Jeremias atirava a ermo, o revólver numa mão, e um litro de cachaça na outra. Um de seus tiros acabaria matando um pato. Ficamos, junto ao curral até o bezerro de “Vermelhinha” nascer. E discutimos que nome dar ao bezerro, se chamaria Rio Pardo ou Rio negro.  Acontece que o bezerro nasceu morto. Talvez o susto dos tiros fizeram a vaca perder a cria. Talvez outro problema qualquer, causou a perda da cria.

Acontece, que o velho Jeremias ficou muito irritado, e disse que a culpa da perda do bezerro era nossa! Minha e de Pedro, no caso minha irmã Cássia. E disse mais, que não éramos filhos legítimos dele. Éramos fruto de traição de nossa mãe Marta, sua esposa infiel. Na sua ausência deitava-se com Paulo o marido de Suzana sua cunhada. O velho Jeremias descobrira que era estéril, e por isso odiava-nos. Cheio de fúria disse que ia matar a mim e a Pedro, na verdade uma menina, e chamava-se Cássia!

Ele nos amarrou, e nos sufocou com suas próprias mãos. Ao sair da casa e ver a nós, eu e Cássia  suas duas filhas mortas. Nossa mãe Marta, entrou em casa, se apossou da espingarda e deu um tiro de doze a queima roupa no velho Jeremias, que morreu na hora. Ao cair da noite, Paulo apareceu. Ao tomar conhecimento do fatídico acontecimento, maquinou um plano diabólico, que logo pôs em prática. Deu uma facada no pescoço da nossa mãe Marta, e pendurou todos os corpos na árvore. Suzana tornou-se legítima herdeira da propriedade. E a verdade, sobre a morte de todos nós os enforcados nunca ninguém além do senhor ficou jamais sabendo. A história que a maioria das pessoas sabe e que prevaleceu até hoje, seria a que o velho Jeremias tivera um surto de fúria, e bêbado matou a todos nós, e se matou. A propriedade amaldiçoada, ficou conhecida como o Sítio da “Árvore dos Enforcados”.

17 de Agosto de 2020.

 A ilustração é foto da capa do long play de Jorge Ben "A Tábua de Esmeralda" de 1974.

  




Sorte Cap 12


Senhor Djalma, queria saber que julgamento fazia dele, aquele cachorro que o olhava com tanta insistência. Nada tinha para oferecer-lhe. Por acaso estaria exalando algum cheiro que o atraía? Na verdade, fazia alguns dias que não tomava banho. Pensou em enxotá-lo, desistiu. Lembrou que a reação do cão poderia ser pior. Olhou pro céu. Havia um lá. Era imenso, só comparado ao mar. Imaginou, se aquilo tudo, lá, acima das cabeças das pessoas fosse água? Uma água plasmada. Enquanto que, cá embaixo estivéssemos todos no fundo de um magnífico oceano. E ao morrer? Conseguiu ver as almas das pessoas que morriam, subindo à tona. Imaginou-se flutuando, subindo do chão. E sentiu-se leve. 


De repente, se encontrava no meio da feira. No meio da feira, as almas esbarrariam umas nas outras? A algazarra, conseguia afastar os anjos da guarda das pessoas. Eles ficavam pendurados, suspenso nas árvores, nos topos dos telhados mais altos, esperando que que seus protegidos acabassem logo aquilo. E seguissem seus caminhos. Senhor Djalma quis ter a certeza que estava no mundo dos vivos. E propositalmente tentou esbarrar em alguém. Quedou surpreso, ao perceber que não se chocava com os corpos! Traspassava, a todos. A música da bandinha de pífanos o envolveu. Agarrou-o e levou-o. Levou-o a quermesse a que convidava para logo mais a noite. O santo com sua cara de cera, ignorava-o, sério.

Por outro lado, a balburdia, o burburinho, tinha o poder de atrair os demônios. Era fácil vê-los andando entre as pessoas. Puxavam a barra das saias das mulheres, davam tapas nas orelhas de alguns homens, faziam redemoinhos, chutavam traseiros de meninos. Derrubavam cestos de frutas, legumes, escondiam a faca do peixeiro. Tomavam cachaça e riam com os bêbados. Tudo o que pudessem fazer pra conseguir discórdias, contendas, desavenças. Ah! qualquer coisa fariam. 

A feira, a um olhar desatento, pareceria uma bagunça, uma coisa desordenada. Mas tudo, naquele formigueiro humano, estava traçado. Encontrar ou desencontrar pessoas. Perder, ou encontrar dinheiro, a bolsa. As vendas, as compras, os roubos, os furtos. Tudo meticulosamente decidido. Os pecados, com seus endereços e destinatários certo. Assim como as virtudes, a esmola pro cego, que não era cego. A ajuda inusitada a alguém. Senhor Djalma conseguiu desvencilhar-se do cão. 

No entanto deparou-se com algo que considerou ainda mais estranho. Uma vaca amarela, que seguia a sua frente. Ficou observando-a. Viu um menino, azul, que a conduzia. Andavam rápido, de modo que ele teve que apressar o passo para alcançá-los. Acabou perdendo-os. O chocalho da vaca persistia, longe. Chamando-o. Senhor Djalma, ligado no menino e na vaca, sem perceber entrou numa ruela, aonde nunca mais tinha ido. Quem sabe nunca estivera ali. Havia sobrados velhos, que se envergavam como se fossem cair. Como se olhassem para ele, e quisessem abraçá-lo, de tanta saudade que tinham. Ali, a luz do dia esmaecia, parecia que estava anoitecendo. Mesmo na manhã. O dia ficava pesado, sujo, desbotado. Talvez fosse ali, um submundo. Havia casas de jogos, bordéis, cassinos, bares. Não se via uma única casa de família. Talvez lá nos fundos dos cabarés, vivessem famílias. Lá nos bastidores uma realidade familiar. Enquanto que na fachada se ofertava um mundo de sonho, jogos, fantasias. Mas voltando de lá do fundo, tão lá pro fundo. Tudo o que se via parecia muito grotesco, desumano. As pessoas seriam de verdade? Havia roupas, penduras em varais improvisados, roupas íntimas, de prostitutas. Havia porcos, chafurdando os esgotos, cheiro forte de lama, no meio da rua. Charretes passavam indiferente a tudo. Como se as rodas de ferro sequer tocassem o solo desvalido. 

Havia uma casa de jogo do bicho. A pintura dos animais da roda, enfeitava a entrada. Tão circense cena! Entrou, e tudo pareceu tão familiar. Encontrou seu pai, numa banca de pôquer. Entretido no jogo, não o via. Lembrou de muitas vezes ainda criança estivera ali. E importunava-o pedindo dinheiro pra comprar doces, no carrinho de quitutes lá fora. E o pai, dizia pra que ficasse quieto e não o interrompesse. Insistia porém para que ficasse ali perto, pois tinha sangue bom, e lhe trazia sorte. 

07 de Agosto de 2020. A ilustração desse capítulo, é foto da capa do disco Long Play da Banda QUINTETO VIOLADO (1982).

 

A Tempestade Cap. 11






Senhor Jeremias iniciou a contar sua versão. Disse assim: Logo cedo, como era dia de feira, fui a vila, comprar alguns mantimentos. Depois de tudo comprado, fui a taberna tomar umas cachaças! Todo dia de feira era assim. Ao cair da tarde, porém, o tempo mudou. Percebi que retornaria a casa, debaixo de uma tempestade! O mundo de repente escureceu. Debaixo de um forte temporal retornei! Chovia, como a muito não chovia nesta região. E eu estava muito bêbado! A carroça, no barranco do açude, quase virou. Pois era muita lama, a água abrira crateras na estrada. Por conta dos relâmpagos e trovões, a égua cheia de pavor, dava coices e empinadas bruscas. Apliquei-lhe muitas chicotadas. 

Ao chegar ao terreiro da choupana, desfiz a carga. Ajuntei os atavios no alpendre. Completamente molhado entrei em casa. Na cozinha encontrei Marta, esta mulher com quem convivi todos esses anos. Estava na companhia de sua irmã, Suzana. Se aqueciam entorno do fogão. As duas conversavam conversa baixa, de fuxico. E fecharam a cara, ao perceberem que eu estava completamente bêbado. As crianças, já estavam no quarto. Fui até a dispensa, abri um garrafão de aguardente, que tenho guardado, para certas ocasiões. A trovoada cantava sua música, e os acordes eram como reprimendas vindas dos céus. Furioso, os céus queriam repreender ou castigar, fosse lá quem fosse. 

Olhei pela janela e vi que o chiqueiro das aves estava aberto. Patos, marrecos, pintos e galinhas andavam debaixo da chuva. Com raiva, pois sabia, muitos pintinhos iriam morrer, dei tiros para que as galinhas procurassem abrigos. Acabei acertando um pato. Busquei a ave morta, no meio do terreiro. Falei pra Marta que cuidasse daquele pato. Eu queria comer pato frito, com cachaça. 

Na cozinha deu-se início uma contenda. Pois, a minha cunhada Suzana não aceitava que Marta, sua irmã àquela hora da noite tivesse que aprontar um pato pra mim comer. A discussão rapidamente se tornou uma briga. E este velho que vos fala, teve que fazer valer quem era que mandava ali! Eu disse a minha cunhada que desaparecesse da minha casa. Eu a expulsei da minha casa! E tinha mais, era pra ela deixar a casa naquele instante, em plena tempestade! Então Suzana, apelou, disse que se tivesse que sair dali expulsa daquele jeito, nunca mais voltaria lá. A briga estava feita. Acusei-a de invejosa. Ela revidou dizendo que eu não passava de um velho, bêbado! Daí eu parti pra dar-lhes uns bofetões. Marta entrou na briga. 

Apavoradas as crianças fugiram para o mato. Pois tinham medo de brigas. Pois temiam no que podia dar. Era provável que foram pedir abrigo a alguém da vizinhança. Só sei que sumiram. Toda vez era assim. Suzana com raiva, virou a panela com a carne de pato, ficou tudo derramado no meio da casa. Tomado de ódio não contei conversa. Dei-lhe um murro. Ela caiu, ao levantar-se se apossou da espingarda doze, que ficava pendurada na parede. E atirou contra mim. Saquei o revólver e atirei nela! Aconteceu que Marta se atravessou na frente, e foi atingida no pescoço, pelo tiro que eu dei. Marta morreu, nos braços da irmã. Um raio caiu num pé de cajueiro que ficava no oitão da choupana. O estrondo foi tão forte que encheu a todos de pavor. Por instante fiquei cego e os ouvidos doíam. 

Mesmo baleado, consegui sair de casa, e fui tentar a montaria pra tentar socorro. Ao atravessar o terreiro, indo em direção a cocheira pra pegar a égua, meu coração deu um baque, ao ver o que via, Pedro e Cecília, embaixo do pé de cajueiro, mortos. Os dois, haviam sido atingidos pelo raio. 

Coloquei os corpos das crianças bem aqui, debaixo dessa árvore. Eu tinha perdido muito sangue, acabei não resistindo. E dei meu último suspiro bem ali, naquele pedaço de raiz retorcida. Suzana, resolveu pendurar todos nós, nesta árvore. Sua intenção era me incriminar. Ela foi até a delegacia, e contou à polícia que eu, havia surtado, e matado a todos. E em seguida me enforcado, bem aqui. Era uma álibi perfeito, todos sabiam das brigas frequentes que ocorriam nesta casa, por causa das minhas bebedeiras. Suzana, acabaria ficando como única herdeira da propriedade da irmã. Era tudo o que mais queria. Maldita invejosa. Foi o que realmente ocorreu senhor Djalma.

01 de Agosto de 2020. A ilustração deste capítulo, é a capa do disco Long play "AMADEUS" de 1985.