A mulher não estava morta, dormia apenas. Era
a mãe do Senhor Djalma. A reconheceu pelo cabelo. Como teria ido parar naquela
casa estranha? Cheia de corredores escuros?
Por que estaria ali, àquela hora da noite? Achou que já era noite. E se
haviam quartos, por que estava deitada naquele sofá? Poderia ter ido pra cama.
Eram muitas perguntas sem respostas. Esperaria que o tempo lhe respondesse, um
dia. As evidências iam surgindo por si só. Havia um porco morto, pelado, desviscerado.
Pendurado pela cabeça, por um gancho de ferro preso a queixada. Enquanto o
sangue pingava no cimentado. A luz que havia era alaranjada, e vinha duma
lâmpada de bulbo leitoso, pendido dos caibros por um fio branco, preto de sujo.
O gato era da raça angorá. Todo desconfiado a
um canto, apreciava a cena. Tinha as patas dianteiras unidas, próximas ao
peito, numa posição incômoda. O dorso rente ao piso. As orelhas apontavam pra
cima, feito a máscara do Batman. Longo rabo fofo. Os olhos abruptos, a cara
fechada. A íris tentando se adaptar a pouca luz. Como um embriagado de mau humor.
De ressaca, nada é interessante. O que um gato, numa ocasião com aquela,
estaria pensando? Claro, tinha certeza que eles pensavam. Se assim não fosse,
não teria como explicar as caras e bocas que faziam quando estavam atentos,
observando. Um adágio dizia que gatos tinham o poder de ver os espíritos
desencarnados. Tanto era verdade que estávamos vendo, um ao outro. Parecia que
ninguém ali, pertencia mais ao mundo dos vivos.
Aquele gato o perseguia, desde a infância. Odiava-o.
Desde o dia que urinou em sua cama. Não era como seu pai, que gostava de
bichanos. Ao contrário, detestava-os. Os gatos urinavam para marcar território,
disseram-lhe um dia. Jamais esquecera disso. O cheiro de urina de gato ficaria
no colchão pela vida toda que viveu na casa dos pais. Passou a odiar todos os
gatos do mundo. Poria na cabeça a ideia de vingar-se. Nítidas lembranças
vieram, de vezes em que tentara livrar-se dele. Numa ocasião, à custa de muitos
arranhões e mordidas conseguiu colocá-lo num saco de estopa. E levou-o por
léguas adiante, no caminho da montanha. Qual não foi sua surpresa ao vê-lo de
volta, são e salvo, uma semana depois. Passaram a odiar-se mutuamente. A ideia
de dar fim ao gato, viraria obsessão. Um dia o menino Djalma viu o bichano
dormindo sobre a tampa do tonel de água da chuva, na quina do oitão de casa. Com
cautela aproximou-se, e com um golpe rápido derrubou-o dentro d’água. O felino
foi parar no fundo. Todo molhado emergiu, cheio de pavor nadou como pode até as
bordas, o seu pelo molhado puxava-o pra morte, a muito custo conseguiu sair.
Poucos dias depois que o pai partira desta
vida, abalado pela perda do amigo, o gato também velho e doente, morreu.
Coubera ao menino Djalma, a obrigação de se livrar do cadáver do gato. Acometido
por um misto de raiva e repulsa, colocou o pobre animal dentro de uma mala
velha. E saiu pela rua, se sentindo como um criminoso que acabara de cometer um
crime, de matar alguém, e agora ter que dar fim ao corpo. Lá ia o menino,
carregando o sinistro numa mala preta, que pesava quase um terço do seu próprio
peso. Mal conseguia disfarçar o medo de ser pego pelo guarda municipal, e ser
acusado de um crime que não cometera. Como um fugitivo apressou o passo, ao alcançar
o caminho que dava pro rio. Apesar de inimigo deu-lhe sepultamento digno. Colocou-o
num lugar bonito, próximo a ribanceira do rio. Cobriu a mala com um pouco de
terra e pedras. Muitos anos depois
passara naquele local, mas nem vestígio havia da sepultura. Sabia exatamente o
local. Nunca saberia se as aves de rapina, ou algum bicho do mato teria
aproveitado os restos mortais daquele gato. E lá estava ele, o dito cujo, bem à
sua frente.
Seria mesmo aquele gato? Que parecia com ele,
parecia! Claro, que era! Reconheceria aonde o visse. E foi o que aconteceu
assim que o viu. Tinha certeza, ali estava ele. Evidências começaram a
cristalizar em sua mente. Lembrava-se de quando morou na vila da praia, toda
vez que ia banhar o rosto no sol matinal. Lá estava ele, o gato que um dia fora
do seu pai. E que ele próprio enterrara na ribanceira do rio. Dormia o sono dos
justos, bem acomodado entre a calha e as telhas da eira, da casa da senhora
Maria Augusta. Ao lado de um vistoso pé de carambola, o ano inteiro carregado
de frutos. A lembrança que mais o assustou foi o da vingança do gato. Claro, o
gato um dia vingar-se-ia, do ódio que o senhor Djalma denotava a ele.
Dentro de casa era noite. Lá fora o dia
vertia raios de sangue nas nuvens do céu, como se o sol sangrasse de morte.
Enquanto urubus fatigados do dia, se arrumavam como podiam pra passar a noite
nas palhas de uns coqueiros. Brigavam entre si por um melhor lugar. Estavam
sempre por perto, prontos para disputarem os restos dos porcos abatidos,
atirados no fundo do quintal. O homem ficou um tempão contemplando aquele
findar de dia. Pensativo, atirava algumas pedras para enxotar alguns urubus
mais afoitos.
Senhor Djalma, depois de casado, foi morar
num chalé perto da ilha das Croas. Quase no encontro do mar e o rio. Era um
casebre de taipa, coberto de palha, o piso rústico de barro batido. Fogão à
lenha. Senhor Djalma nesta época criava passarinhos. O alpendre era cheio de
gaiolas, com papa-capins, sanhaçus, pintassilgos, calopsistas, ararinhas e
canários do reino e belgas. Num dia, com cheiro de trágico no ar, o gato, ninja, deslizou pelas frestas do telhado. Aproveitando a madorna da tarde preguiçosa,
covardemente atacou, várias gaiolas. Ao ver a macabra cena da carnificina, Senhor
Djalma chorou. O inimigo, dali por diante tornar-se-ia, o imortal, arqui-inimigo.
E foi pro mar, pensando num velho adágio que dizia: “A vingança é um prato que
se deve comer frio.”
Fabio Campos, 29 de Agosto de 2020.
A ilustração deste capítulo é foto da contra-capa do Long Play de Belchior "Alucinação" de 1976. O cantor era também artista plástico, e produziu a capa deste disco usando pastel e hidrocor sobre papel. .