Continuavam as lembranças, que se plasmavam. O
sol à pino. Todas as coisas tinham, todas as coisas estavam, à séculos de luz,
vermelho alaranjado. O que não estava assim estava puxando pra amarelo, literalmente. O que
não era assim, ia pra era do fogo, de sol. E tudo o que restara era
estrada. Estrada de barro, cercada de sol. E de arame farpado, de um lado e do
outro. Só a frente, e o que ficou pra trás, livre estava. Pra quem quisesse, ir
e vir. Não correndo, claro. Pois ninguém era doido sair correndo debaixo dum
sol quente, daqueles! As estacas tortas, secas, desprezadamente secas! Cansadas,
de ficarem debaixo daquele calorão! E ficavam, sem reclamar tantinho assim! Tristemente
cumpriam o papel de cerca, resignadamente cerca, seca. As casas, teve delas que
simplesmente morreram. Outras, foram embora. Permanecer ali, não era pra
qualquer um não. Aguentar o que aguentavam.
As que conseguiram fugir, fugiram. Negar
um copo d’água a um cristão, isso não... Se alguém pedisse mostrar-lhe-ia o
caminho do açude. O açude coitado, a muito que também morrera. Foi minguando,
minguando. Até ficar esturricado. Sua pele, suas mãos, viraram esqueleto. Carcaça de açude. Açude de água leitosa. Água salobra, água que a “orelha de burro” inutilmente
tentou esconder.
Uma menina. Ó que visão tão bela! Aquela cena
para sempre ficaria, flutuando dentro de sua mente. Toda vez quando ia dormir a
via. E permitia que voasse por dentro dos seus pensamentos. Tão à vontade, feito
inquilino folgado. Pra lá, e pra cá. Pediu a Deus que a livrasse, do seu mau
olhado. Pediu que a livrasse do pensamento pecaminoso. Pediu que a mantivesse pura.
Permanecesse, e que sempre a visse naquele estado de inefável contentamento. E
assim seria, todas as vezes que lembrava da menina. Estava vestida num vestido
de renda estampado, que ia até perto do joelho. Escondia as pernas, bem
torneadas, da menina morena. Na estrada, logo atrás, andando de bicicleta, vinha-lhe
o anjo da guarda. Pedalou um pouco mais, e passou adiante. Na verdade,
transpassou por dentro da menina, que sequer o sentiu. O anjo tinha cara de
Junior. Cara de menino levado, travesso. De bermuda, chinela de dedo, camiseta
regata. A menina com seu cabelão negro, escorrido. Preso por duas presilhas,
por trás das orelhas. Os olhos castanho escuro sofriam de tanta luz. Combinava
com a cor de sua pele. Os lábios de menina, que se já não fosse, logo, logo,
seria, moça.
Havia um dinossauro lá. Se fosse qualquer um
que contasse essa história, dificilmente alguém acreditaria. Só acreditava
mesmo pois estava, com os próprios olhos, vendo o que via. Uma menina muito
bela, com aquelas características, que por si só já era uma visão fantástica! Vê-la
se dirigindo a um vale onde havia um dinossauro, algo simplesmente
inverossímil! Havia um parque de escavações de fósseis pré-histórico, encravado
ali. A menina tinha uma sombrinha, cujas cores combinavam com o vestido. E ia,
tranquila, debaixo do sol causticante. Tranquila até demais. Andava como quem
desfilava numa passarela. A sensação era de quarenta e poucos graus centígrados.
A sombrinha, a dar-lhe ainda mais graça e beleza. A realçar as cores do tecido,
da sua pele, e do cabelo. Os braços longos e graciosos. Um, estava dobrado até
o colo, e segurava a haste da sombrinha, o outro estendido ao longo do corpo,
segurava um pequena valise. O senhor Djalma reconheceu aquela valise, como
sendo parecida com uma de sua mãe. Daquelas cujo trinco, se constitui de duas
bolinhas de ferro que ao se cruzarem fecham a bolsa. Para abrir era só forçar
as bolinhas no sentido contrário. Um súbito pensamento lhe veio, mas
imediatamente descartou. Não, não poderia ser! Àquela menina jamais seria sua
mãe.
O menino pareceu ser o anjo da guarda da
menina, mas não era. Primeiro, porque anjos da guarda, dificilmente teriam
problemas com espinhas, no rosto. E nos seios da face, daquele ali, se lhes
criaram umas saliências, que o tornava ainda mais sapeca. Aparentava ter seus
dez anos de idade. O menino, que não era o anjo, disse bem assim: “Hoje, eu vou
pra casa do meu pai!” Essa frase, lhe saiu assim leve, brincalhona, de lá
dentro do seu coração, andador de bicicleta. A menina não o ouvia, estavam em
dimensões distintas. Acendia o garoto, o que já estava aceso, um sentimento de
afeição muito forte, pelo pai. Deu pra sentir, ao ouvi-lo falar! Deu pra sentir
quanta emoção havia, naquela frase dita! A euforia brincando dentro de sua
alma. Pra entender o que se passava na mente daquele menino, de dez anos. Era
preciso compreender que o amava muito. E que não via o pai, a meses. Haviam
motivos vário, morava com a mãe, em outra cidade, distante. A separação, ocorrera
de forma brusca, abrupta, dolorida, inesperada. O menino tinha só quatro anos.
Foi uma barra! Ninguém perguntou, o que achava? Se queria que fosse assim? Ninguém,
pra perguntar se não tinha outra maneira de resolver aquela situação! Simplesmente aconteceu, e pronto. Engolir em
seco, aceitar. Era a lei do: “Fazer o que? É assim, e pronto!” Se o pai,
soubesse o quanto o amava. Talvez o amasse com mais amor. Se entendessem que
quando a velhice chegasse, talvez fosse àquele que iria cuidar dele. Amaria com
muito mais amor.
O que aquela casa estaria fazendo ali,
perdida no meio do deserto? Resolveu ir até lá. Não parecia abandonada, dava
pra sentir que havia almas de pessoas vivas por perto. Ao se aproximar do alpendre, a
saudação: Ô de casa? E de lá dentro: Ô de fora! Era voz de uma senhora. Continuou: Louvado seja nosso
senhor Jesus Cristo! E logo veio a resposta: Para sempre seja louvado! Uma idosa, veio vindo lentamente, feito felino quando vai a caça. Trajava um
vestido longo, de estampa verde com flores vermelhas, um lenço amarrado na
cabeça. Rosto sofrido, queimando do sol, enrrugado. O moço Djalma fez-lhe um
pedido: A senhora, poderia me dá um copo d’água? A mulher desapareceu, engolida pelo escuro do
interior da casa. Voltou com uma quartinha cheia. A água fria, dava ao barro,
cor de molhado! A água que verteu pro caneco de alumínio, água Leitosa, mas fria!
De barreiro, mas fria! Barrenta, mas fria! Caneco na mão, e mais uma pergunta: A
senhora conhece aquela menina? Conheço...
30 de outubro de 2020.
Foto de ilustração, a cantora Paula Toller, da Banda Kid Abelha. Menina, mulher.